quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Lei dos Corpos Dóceis

O Jornal Nacional terminou agora e já vai começar a novela das oito que na verdade começa às oito e quarenta. Já se passou o jantar, a hora do banho, dos deveres de casa e ainda tem um resto de comida nas panelas em cima do fogão e a louça continua suja dentro da pia. Os cachorros já se deitaram, as toalhas estão penduradas, a casa tá limpa e silenciosa, exceto pelos cômodos contidos de pessoas que provocam algum ruído quase insignificante. Cada um no seu quarto, sua cama, televisão, computador e música. Houveram tentativas de conversas, mas as divergentes opiniões nos levaram ao lugar mais óbvio: lugar nenhum. Acometida de resfriado que não melhora nem piora, me irrito a medida que uma corisa incômoda escorre pelo meu nariz que ora não sente cheiro de nada, assim como minha boca não sente gosto, mas minha alma sim, ela saboreia o paladar amargo do mau humor. Os ouvidos insensíveis escutaram pela primeira vez o coração sensível que já não tocava há algum tempo, já era hora de desprender de lembranças sem sucesso que o passado me deixou. Cidade e cor tocam em meu auxílio para compor palavras que não fazem mais do que desabafar. É tudo tão rotineiro. Almoço, gasolina no carro, remédio para gripe, as notícias do jornal, a história da novela, as crises, as decisões, as músicas para dias depressivos, o número do sapato e até a cor dos olhos. Qualquer passo que seja menos iluminado me proporciona a sensação de um passo incerto, em falso, duvidoso. Sair do conforto de uma cadeira totalmente acostumada com as curvas do seu corpo, a toalha sempre estendida ao seu modo, as roupas penduradas por modelo, cor ou tamanho no guarda-roupa são parte de um presente concreto e totalmente previsível. É tudo tão previsível. A essa hora, creio eu, a maioria se importa apenas em vestir-se de um pijama confortável e deleitar-se numa cama macia e de lençois limpos, porque é mais interessante do que jogar cartas em família ou ler Nelson Rodrigues e suas putas bacanas. Tudo isso me entedia deploravelmente. O veredito diz que sou culpada pelos meus pecados, mas eu não quero ser sozinha essa noite. E por que tem sempre que fazer frio no inverno e calor no verão? Por que as flores são mais bonitas na primavera, mas a folhas sempre caem no outono? Por que amigos vem e vão? E por que sempre somos os mesmos? Por que não mudamos a cor dos olhos e o número do sapato? Por que comemos sempre no mesmo horário e pedimos a mesma cerveja no mesmo bar? E que diferença faz se as camisas não são penduradas por ordem de cor? Envolvo-me de perguntas que não farão a mínima diferença, embora me incomodem demasiadamente, mas prefiro continuar a escrever essas palavras do que levantar-me e pedir para que amanhã seja mais quente do que hoje, que eu tenha menos dúvidas e que a corisa pare de escorrer. Sendo assim, padeço dos pecados que eu cometo e carrego a cruz da incapacidade de transformar nada em qualquer coisa, ao contrário disso, vejo qualquer coisa passar-se por nada porque eu não soube vê-la de outra maneira. Até os meus olhos estão acostumados com a Lei dos Corpos Dóceis. E enquanto isso, enquanto meu corpo trafega pelos mesmos caminhos e eu tomo sempre os mesmos remédios para resfriado, minha alma de bicho selvagem e inconformado vomita a repugnância de ser apenas Eu, e nada além disso.


Porque nada eu fiz para que fosse diferente.


Laura Santos.

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